A certa altura do poema “A flor e a náusea”, Carlos Drummond de Andrade (1902 -1987) se pronuncia da seguinte maneira: “O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera”.
Decorridos 80 anos da publicação de A Rosa do Povo, livro do qual se extraiu o verso acima, ainda vivemos dias sombrios, muitos por razões diferentes daquelas que inspiraram a grande obra de 1945 do poeta mineiro, outros por motivos humanos e universais que excederam o tempo e nos acompanharão talvez para sempre.
Mas se há uma verdade que precisa ser ressaltada é sobre quanto nossa época tem se esforçado para combater os preconceitos e afirmar as diferenças não como indicadores de maior ou menor valor, senão como caraterísticas intrínsecas das pessoas e culturas, constituindo uma diversidade a qual requer conhecimento, respeito e sobretudo livre espaço de existência, manifestação e direito.
Hoje, existe um movimento que, crescentemente e contra qualquer forma de narcisismo, valoriza uma atitude que favorece a construção de sociedades mais justas, democráticas e inclusivas. Assim, diante de religiões, orientação sexual, arranjos familiares, culturas, etnias, etc., observamos que velhos tabus estão se dissolvendo para dar espaço a uma aceitação natural contrária a qualquer forma de esteriotipação, tendência que, inclusive, as leis têm se esforçado para acompanhar, readequando seus códigos às mudanças que, resistindo a oposições, empoderam-se e se afirmam nas vivências do corpo social. Enfim, é chegada, com atraso e justiça, a hora de dar voz e vez ao que “não é espelho”.
Entre tantas possibilidades que a linguagem tem de assumir posição diante dos fenômenos da sociedade e da existência, as tirinhas vêm adquirindo cada vez mais importância e, entre outras causas, têm contribuído para legitimar a representatividade historicamente negada a alguns grupos em detrimento do poder, do benefício e da limitação de pensamento que caracteriza, mesmo hodiernamente, grande parte dos indivíduos que se impõem pela violência e pelo radicalismo.
Para efeito de esclarecimento didático, as tirinhas são sequências de quadrinhos de natureza crítica e humorística, tendenciosamente mais curtas que as Histórias em Quadrinhos alentadas por mais detalhismo e maior investimento na construção do enredo. Porém, apesar de possuírem elementos comuns às HQs, diferenciam-se por utilizarem uma linguagem mais rápida e concisa. Servindo-se de balões e onomatopeias, elas se constituem discursivamente pela presença de signos verbais e não-verbais. Finalmente, a ambiguidade, o processo de “fabricação” de palavras (neologismos) e as ironias constituem outros recursos habituais com vistas a enriquecer a expressão desse gênero cada vez mais consumido.
Na sequência, temos uma tirinha do Armandinho, caracterizada, via de regra, por um traçado limpo, despojado e diálogos ligeiros.

(BECK, Alexandre. Disponível em: https://brainly.com.br/tarefa/36070556. Acesso em 30-12-2024).
Vejamos de que modo se estabelece aqui a relação com o que podemos sim chamar de “direitos humanos”.
O 1º quadrinho é quase monocromático, pois apresenta palavras escritas em preto e balões de semelhante tonalidade, acinzentados. Essa ausência de cor imprime um tom apagado, vazio, reforçado pelos balões através dos quais nada se diz, pois o texto verbal propriamente dito está localizado na parte superior esquerda, onde normalmente se abre um parágrafo, e na parte inferior direita, em que se costuma encerrar esse segmento. Entretanto, é de grande importância o que se enuncia por essas palavras: “Não gosto de monocultura”. Ora, sabemos que “mono” é um elemento de composição cujo significado é “um” ou “único”; quanto a “cultura”, pode fazer menção ao cultivo da terra como também ao conjunto de saberes, comportamentos, tradições e costumes de determinados grupos transmitidos de diversas maneiras de geração a geração – eis a ambiguidade que alerta e atiça a curiosidade do leitor atento. Os possíveis sentidos vêm confirmados quando, ainda provocativamente, o enunciador fecha o quadrinho com a seguinte observação: “Nem no campo, nem na cidade”. Diga-se de passagem, não custa registrar que o espaço urbano é também locus de circulação de ideias massificadas, pensamentos repetitivos, fórmulas de linguagem, etc., que favorecem significativamente a reprodução da mesmice.
O quadrinho seguinte é visualmente impactante, pois está em evidente contraste com as características visuais do anterior. É abundantemente colorido, além de ter praticamente todo o espaço dominado por balões e flores variados que expressam o gosto do enunciador: “Prefiro a riqueza de vida, cores, sonhos, pensamentos…”. Isto é, seja no campo ou na cidade, a melhor vida é a que não nos limita pelo espaço porque se abre a todas as possibilidades – assim, a verdadeira riqueza está em existir integrado aos variados tons, à capacidade de imaginar e de formular conceitos a partir das experiências que se adquirem com a liberdade de escolher entre apenas um ponto de vista (“mono”) ou a partir de tantas outras alternativas disponíveis com as quais não tomamos contato e, consequentemente, não aceitamos.
Partindo desse princípio, é forçoso considerar que não só impomos limitações ao outro, mas também a nós mesmos, seres resumidos a um horizonte estreito e decorrente, na maior parte das vezes, daquilo que nos disseram e não das vivências que ousamos experimentar.
O último quadrinho completa as reticências que encerram o texto verbal do 2º: “Multiculturas, pluripensares…”. Os prefixos “multi” e “pluri” têm aqui seus sentidos ampliados ou reforçados também pelo “s”, desinência de plural dos nomes em nossa língua. E o sujeito do discurso, convicto de suas preferências, deseja integrar-se ao que é divergente e não restritivo. Naturalmente que, quanto mais nos abrimos ao conhecimento de diferentes formas de pensar e agir, maior se torna a nossa capacidade de raciocinar, compreender e realizar um movimento de elevação das nossas faculdades. No segmento final, pássaros, insetos, gente de todas as cores, etnias e em distintas condições expressam uma realidade que nos parece ainda “utópica”, mas na direção certa da harmonia e da felicidade, como deve ser. A última palavra da tirinha é um neologismo criado a partir da composição por justaposição (“gentediversidade”) o qual ratifica que a matéria mais valiosa a se adquirir ao longo da existência é a riqueza de descobertas que, ingenuamente insuspeitada, não está fora de nada que não seja substancialmente humano. O mundo ganha outras cores e sentidos quando nos entendemos.
Então, se é para falar de intolerância, não sejamos condescendentes com o que não é respeitoso, não prega a igualdade ou não legitima direitos os quais não estão subordinados à vontade de ninguém – a diversidade jamais pode ser tomada como pretexto para qualquer forma de segregação. Entre tantos conceitos equivocados – e não somente sobre pessoas, como também sobre alguns gêneros do discurso –, espera-se, finalmente, que essas breves considerações alertem para o perigoso equívoco de achar que “tirinha é coisa de criança”. Discordo eloquentemente, a não ser que se repare o juízo: “tirinha é coisa para ser lida desde criança”. Então, se é verdade que “nunca é tarde para começar”, também está certo dizer que “Deus ajuda a quem cedo madruga” – mais tirinhas, para todas as idades!