É flagrante a dificuldade que os vestibulandos apresentam com relação às atividades de produção de texto. Por isso, a Elite da Língua vai, sempre que possível, abordar a questão, procurando apresentar algumas alternativas que visam facilitar a escrita.
É bom deixar claro que, em nenhum momento, apresentaremos “receitas” ou “fórmulas” redentoras. Mas sim: com alguma pretensão, disponibilizaremos estratégias e modelos textuais que podem ser utilizados com sucesso no trabalho de redigir.
É ainda necessário ressaltar que os obstáculos são concretos e desafiadores. E, para contornar as adversidades, há que se adotar um comportamento disciplinado e atento o qual só encontrará êxito diante de uma formação leitora que preceda toda esse processo. Fica a dica!
Vamos ver na prática como tudo isso pode ser resolvido.
PROPOSTA – FUVEST 2025
Texto 1:
“Rubião, de cabeça, subscreveu logo uma quantia grossa, para obrigar os que viessem depois. Era tudo verdade. Era também verdade que a comissão ia pôr em evidência a pessoa de Sofia, e dar-lhe um empurrão para cima. As senhoras escolhidas não eram da roda da nossa dama, e só uma a cumprimentava; mas, por intermédio de certa viúva, que brilhara entre 1840 e 1850, e conservava do seu tempo as saudades e o apuro, conseguira que todas entrassem naquela obra de caridade”.
Machado de Assis. Quincas Borba. Capítulo XCII.
Texto 2:
As associações de indivíduos da mesma espécie constituem inumeráveis sociedades. Assim como as relações sociais, a vida é constituída por simbioses – associações duráveis e reciprocamente proveitosas entre seres de espécies diferentes.
Edgar Morin. Fraternidade. Para resistir à crueldade do mundo. Adaptado.
Texto 3:
“Já estávamos em Uidá havia quase duas semanas quando comecei a perceber como o Akin era esperto e inteligente. Ele conhecia quase todos os donos das lojas, pois de vez em quando fazia alguns trabalhos para eles, como limpar o chão, levar recados ou entregar encomendas. Foi dele a ideia de andar comigo e com a Taiwo pelas lojas e pedir presentes em nome dos Ibêjis [assim são chamados os gêmeos entre os povos iorubás], qualquer coisa, desde que não fizesse falta (…). Quando voltamos para casa, foi porque não conseguíamos mais carregar todos os presentes que ganhamos, e a minha avó novamente ficou brava, mas, no fundo, acho que gostou. A Titilayo riu e disse que éramos mais espertos do que ela imaginava, mas que não devíamos fazer aquilo novamente porque os tempos estavam difíceis e as pessoas poderiam não ter o que dar. Como ninguém gostava de recusar presentes aos Ibêjis, acabavam gastando o que não podiam ou se desfazendo do que precisavam, sem contar que ainda tinham que economizar dinheiro para quando começasse a época das chuvas, em que quase não havia movimento no mercado, nem o que vender ou colher, e faltava trabalho para muita gente. Os rios e lagoas transbordavam, engolindo as terras e os caminhos e dificultando os negócios. O Akin disse que então só pediríamos nas casas dos ricos, dos comerciantes que vendiam gente e moravam do outro lado da cidade. O Ayodele, que tinha voltado dos campos de algodão, avisou que não era para irmos lá de jeito nenhum, pois eles nos colocariam dentro de um navio e nos mandariam como carneiros para o estrangeiro”.
Ana Maria Gonçalves. Um defeito de cor.

Yhuri Cruz. Ibeji, 2022. Museu de Arte do Rio.
Texto 4:
O mundo produz alimentos mais do que suficientes para erradicar a fome. Coletivamente, não nos faltam conhecimentos nem recursos para combater a pobreza e derrotar a fome. O que precisamos é de vontade política para criar as condições para expandir o acesso a alimentos. À luz disso, lançamos a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza e saudamos sua abordagem inovadora para mobilizar financiamento e compartilhamento de conhecimento, a fim de apoiar a implementação de programas de larga escala e baseados em evidências, liderados e de propriedade dos países, com o objetivo de reduzir a fome e a pobreza em todo o mundo. Nós convidamos todos os países, organizações internacionais, bancos multilaterais de desenvolvimento, centros de conhecimento e instituições filantrópicas a aderir à Aliança para que possamos acelerar os esforços para erradicar a fome e a pobreza, reduzindo as desigualdades e contribuindo para revitalizar as parcerias globais para o desenvolvimento sustentável.
Declaração de Líderes do G20. Rio de Janeiro, 2024. Brasil. Adaptado.
Texto 5:
“Mas se você achar
Que eu tô derrotado
Saiba que ainda estão rolando os dados
Porque o tempo, o tempo não para
Dias sim, dias não
Eu vou sobrevivendo sem um arranhão
Da caridade de quem me detesta”.
Cazuza. O tempo não para.
Texto 6:
“Porque – guarde isto! – porque o homem, por mais ignorante que seja, por mais cego, por mais bruto, gosta de ser tratado como gente.”
Ruth Guimarães. Água funda.
Considerando as ideias apresentadas nos textos e outras informações que julgar pertinentes, redija uma dissertação, na qual você exponha seu ponto de vista sobre o tema: As relações sociais por meio da solidariedade.
Instruções:
· A dissertação deve ser redigida de acordo com a norma padrão da língua portuguesa.
· Escreva com letra legível e não ultrapasse a quantidade de linhas disponíveis na folha de redação.
VISTAS SOBRE A PROPOSTA
Antes de mais nada, é preciso que os candidatos tenham uma compreensão adequada do tema, estabelecendo a devida relação entre meio e solidariedade; se abordar apenas a sociedade ou o espaço, tangenciará o tema, de dupla dimensão: social e filosófica.
-Texto 1: Fragmento do romance Quincas Borba. Trata da caridade por aqui praticada em determinada época, mas que pode bem ser observada até hoje – aquela em que o benefício está investido da intenção de fazer propaganda dos bons atos, não sendo, portanto, genuína, mas oportuna.
-Texto 2: De perspectiva filosófica, trata a questão da ajuda mútua como um gesto necessário à sobrevivência – é natural que uns precisem dos outros. Dito de outro modo: as redes de cooperação são promotoras do bem-estar não apenas individual, mas coletivo.
-Texto 3: Demonstra que as atitudes solidárias são uma escolha implicada com outros fatores: relações pessoais, sociais, econômicas e culturais. O que fica evidente é que, mesmo pessoas em condições não propriamente confortáveis, podem ter a iniciativa de ajudar os mais necessitados.
-Texto 4: Apresenta uma declaração que, em tom exortativo, convida à mobilização política e coletiva para resolver problemas os quais atingem pessoas no mundo inteiro: a pobreza e a fome. Sabendo-se que o desafio é grande, a necessidade de uma aliança global é urgente e imperativa.
-Texto 5: Aborda a solidariedade por meio da afirmação de que, mesmo sem os atos de caridade, é preciso ser forte e resistir às adversidades. Ou seja, nem sempre se pode esperar um gesto alheio de cuidado, contudo é preciso sobreviver.
-Texto 6: Defende a ideia da ajuda para que as pessoas tenham condições de uma vida digna. Sob esse ponto de vista, as práticas solidárias expressam a porção mais humana que existe em cada um de nós.
Observe-se que a frase-tema não delimita a questão voltando o assunto apenas para o contexto brasileiro, o que confirma a tendência filosófica da proposta ao optar pelo tratamento de caráter mais universal.
POSSÍVEIS ABORDAGENS
Existem algumas possibilidades de abordagem que aqui se expõem, mas não as únicas:
1-as relações sociais são mediadas pela solidariedade;
2-as relações sociais não são mediadas pela solidariedade;
3-as relações sociais são ocasionalmente mediadas pela solidariedade.
Em defesa de:
-o trabalho pastoral do padre Júlio Lancellotti, reconhecido e premiado: acolhimento e assistência a pessoas pobres, doentes e marginalizadas.
-a importância da mídia na divulgação de situações-problema e promoção de campanhas de conscientização e doação por meio de vaquinhas virtuais ou trabalho solidário + programas que se afirmaram na televisão, como Criança Esperança e Teleton.
-a tendenciosa cordialidade brasileira sempre pronta a se manifestar diante de situações de tragédias, como a ocorrida recentemente no RS.
Contrariamente:
-a modernidade líquida (Zygmunt Bauman): em tempos de relações passageiras e superficiais, não há espaço para os vínculos autênticos e duradores, verdadeiramente solidários.
-o neoliberalismo, ao estimular as práticas individualistas, acirra a competitividade e impede as ações humanitárias.
-a “sociedade do cansaço”, de Byung-Chul Han: a “educação” para o desempenho e a competitividade minimiza as atitudes de proteção e amparo.
Diante das possibilidades, cada redator faz as suas escolhas. Então, que tal um texto a partir da ideia de que as relações sociais nem sempre são caracterizadas pela solidariedade?
ATÉ QUANDO?
“Um a um, todos somos mortais. Juntos somos eternos”. A máxima de Apuleio pode bem ser aplicada às relações sociais que devem ser pautadas na solidariedade – o que nem sempre tem acontecido. Hoje o sistema econômico tem uma implicação direta e perniciosa sobre as atitudes de caridade, embora também seja legítimo reconhecer que, felizmente, há situações em que as pessoas se opõem à inclinação para o egoísmo.
O regime neoliberal tem produzido efeitos não apenas no mundo externo, mas no que cada indivíduo tem se transformado no contexto em que se insere. Expandindo-se juntamente com o processo de globalização, produziu impactos não somente na economia, mas também na cultura e nos valores que permeiam as relações humanas. Assim, o excessivo individualismo, que educa para o sucesso, o êxito econômico e a autoafirmação, e a acirrada concorrência pelas melhores oportunidades têm criado pessoas cada vez menos altruístas. Narcísicas, preocupadas apenas com a própria realização, não praticam gestos de assistência por não serem tocadas pela percepção da necessidade do outro.
Entretanto, há casos em que as práticas solidárias se fazem notórias, e então a esperança de dias melhores se restabelece. Veiculadas pela mídia, campanhas de divulgação e conscientização sobre determinados problemas (guerras, catástrofes, fome) têm mobilizado pessoas a ações que minimizam consideravelmente as demandas de seus semelhantes. Exemplo reconhecido é a atuação resiliente e perseverante do padre Júlio Lancellotti que, para além do acolhimento e da assistência a pessoas pobres, doentes e marginalizadas, inspira tantos outros cidadãos a imitarem seus gestos de bondade visando oferecer algum conforto aos mais desafortunados.
A verdade é que os desafios são grandes, mas nem tudo está perdido. O ser humano, social, e a solidariedade devem restabelecer e fortalecer laços que, nas últimas décadas, tornaram-se um tanto distensos. O sentimento fraterno continua a ser o melhor caminho para o homem estar amparado até os últimos momentos, quando, dos males que o mundo cobrará pelos erros cometidos, só restar mesmo a presença do outro. O que eterniza é apenas o bem que se faz.
ENTENDENDO O TEXTO-MODELO
O redator optou por uma estrutura acertada para o tempo e o número de linhas disponíveis no vestibular: 4 parágrafos, sendo o primeiro de Introdução, o último de Conclusão e os dois intermediários dedicados ao Desenvolvimento. A decisão é prudente em razão da possibilidade de tratar de dois argumentos de maneira consistente, sem incorrer em três parágrafos potencialmente superficiais (“menos é mais”).
A Introdução cumpre o papel de uma “dissertação escolar”: partindo de uma citação de Apuleio, explicita, na sequência, o tema (relações sociais – solidariedade), apresenta uma tese escolhida entre alternativas praticáveis (“o que nem sempre tem acontecido”) e cita os dois argumentos a serem utilizados na sustentação do ponto de vista (“sistema econômico” + “as pessoas se opõem à inclinação para o egoísmo”). Faz-se necessário aqui ressaltar que o elemento modalizador da tese (“nem sempre”) objetiva para a banca o posicionamento relativo do enunciador: há solidariedade em circunstâncias pontuais.
O parágrafo seguinte (argumento 1) abre-se com um tópico frasal que confirma a escolha indicada na Introdução, colocando em pauta o “sistema econômico” por meio de uma crítica de comportamento dos indivíduos contemporâneos diante daquilo que impõe o “regime neoliberal”. Assim, são coerentes as discussões que seguem sobre como o individualismo e a competitividade comprometem a “percepção da necessidade do outro”.
O próximo argumento também ratifica as intenções enunciadas no primeiro parágrafo. Quando se afirma que “as pessoas se opõem à inclinação para o egoísmo”, demonstra-se que “há casos em que as práticas solidárias se fazem notórias, e então a esperança de dias melhores se restabelece”. Nesse sentido, é pertinente destacar o papel da mídia na disseminação de campanhas em favor de pessoas necessitadas de ajuda, como também é bem-vindo aludir à reconhecida atuação do padre Júlio Lancellotti e o seu exemplar trabalho pastoral.
Finalmente, a Conclusão retoma as palavras-chave do tema (“O ser humano, social, e a solidariedade”), ratifica a tese (“laços que, nas últimas décadas, tornaram-se distensos”), e reconhece que, embora seja difícil contornar o problema, há esperança (“nem tudo está perdido”). Para que o sentimento fraterno volte a ser “o melhor caminho para o homem”, é preciso restabelecer o altruísmo. Numa época em que o ser humano não tem sido caridoso sequer com o planeta, o qual tem cobrado nossa indiferença (“erros cometidos”), o que resta é “a presença do outro”. O redator fecha o texto com uma eficiente manobra linguística de confirmação da coerência e da coesão, retomando a ideia de Apuleio utilizada no primeiro parágrafo: “Juntos somos eternos” – “O que eterniza é apenas o bem que se faz”.
O título “Até quando?” é propositalmente provocativo: em que momento teremos a necessária consciência do que precisa ser alterado nas nossas relações com o mundo e as pessoas à nossa volta?