Redação: em busca do texto perfeito

A ELITE DA LÍNGUA apresenta modelos de textos que podem ser utilizados com sucesso nas atividades de redação

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É flagrante a dificuldade que os vestibulandos apresentam com relação às atividades de produção de texto. Por isso, a Elite da Língua vai, sempre que possível, abordar a questão, procurando apresentar algumas alternativas que visam facilitar a escrita.

É bom deixar claro que, em nenhum momento, apresentaremos “receitas” ou “fórmulas” redentoras. Mas sim: com alguma pretensão, disponibilizaremos estratégias e modelos textuais que podem ser utilizados com sucesso no trabalho de redigir.

É ainda necessário ressaltar que os obstáculos são concretos e desafiadores. E, para contornar as adversidades, há que se adotar um comportamento disciplinado e atento o qual só encontrará êxito diante de uma formação leitora que preceda toda esse processo. Fica a dica!

Vamos ver na prática como tudo isso pode ser resolvido.

“Rubião, de cabeça, subscreveu logo uma quantia grossa, para obrigar os que viessem depois. Era tudo verdade. Era também verdade que a comissão ia pôr em evidência a pessoa de Sofia, e dar-lhe um empurrão para cima. As senhoras escolhidas não eram da roda da nossa dama, e só uma a cumprimentava; mas, por intermédio de certa viúva, que brilhara entre 1840 e 1850, e conservava do seu tempo as saudades e o apuro, conseguira que todas entrassem naquela obra de caridade”.

Machado de Assis. Quincas Borba. Capítulo XCII.

As associações de indivíduos da mesma espécie constituem inumeráveis sociedades. Assim como as relações sociais, a vida é constituída por simbioses – associações duráveis e reciprocamente proveitosas entre seres de espécies diferentes.

Edgar Morin. Fraternidade. Para resistir à crueldade do mundo. Adaptado.

“Já estávamos em Uidá havia quase duas semanas quando comecei a perceber como o Akin era esperto e inteligente. Ele conhecia quase todos os donos das lojas, pois de vez em quando fazia alguns trabalhos para eles, como limpar o chão, levar recados ou entregar encomendas. Foi dele a ideia de andar comigo e com a Taiwo pelas lojas e pedir presentes em nome dos Ibêjis [assim são chamados os gêmeos entre os povos iorubás], qualquer coisa, desde que não fizesse falta (…). Quando voltamos para casa, foi porque não conseguíamos mais carregar todos os presentes que ganhamos, e a minha avó novamente ficou brava, mas, no fundo, acho que gostou. A Titilayo riu e disse que éramos mais espertos do que ela imaginava, mas que não devíamos fazer aquilo novamente porque os tempos estavam difíceis e as pessoas poderiam não ter o que dar. Como ninguém gostava de recusar presentes aos Ibêjis, acabavam gastando o que não podiam ou se desfazendo do que precisavam, sem contar que ainda tinham que economizar dinheiro para quando começasse a época das chuvas, em que quase não havia movimento no mercado, nem o que vender ou colher, e faltava trabalho para muita gente. Os rios e lagoas transbordavam, engolindo as terras e os caminhos e dificultando os negócios. O Akin disse que então só pediríamos nas casas dos ricos, dos comerciantes que vendiam gente e moravam do outro lado da cidade. O Ayodele, que tinha voltado dos campos de algodão, avisou que não era para irmos lá de jeito nenhum, pois eles nos colocariam dentro de um navio e nos mandariam como carneiros para o estrangeiro”.

Ana Maria Gonçalves. Um defeito de cor.

Yhuri Cruz. Ibeji, 2022. Museu de Arte do Rio.

O mundo produz alimentos mais do que suficientes para erradicar a fome. Coletivamente, não nos faltam conhecimentos nem recursos para combater a pobreza e derrotar a fome. O que precisamos é de vontade política para criar as condições para expandir o acesso a alimentos. À luz disso, lançamos a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza e saudamos sua abordagem inovadora para mobilizar financiamento e compartilhamento de conhecimento, a fim de apoiar a implementação de programas de larga escala e baseados em evidências, liderados e de propriedade dos países, com o objetivo de reduzir a fome e a pobreza em todo o mundo. Nós convidamos todos os países, organizações internacionais, bancos multilaterais de desenvolvimento, centros de conhecimento e instituições filantrópicas a aderir à Aliança para que possamos acelerar os esforços para erradicar a fome e a pobreza, reduzindo as desigualdades e contribuindo para revitalizar as parcerias globais para o desenvolvimento sustentável.

Declaração de Líderes do G20. Rio de Janeiro, 2024. Brasil. Adaptado.

“Mas se você achar

Que eu tô derrotado

Saiba que ainda estão rolando os dados

Porque o tempo, o tempo não para

Dias sim, dias não

Eu vou sobrevivendo sem um arranhão

Da caridade de quem me detesta”.

Cazuza. O tempo não para.

“Porque – guarde isto! – porque o homem, por mais ignorante que seja, por mais cego, por mais bruto, gosta de ser tratado como gente.”

Ruth Guimarães. Água funda.

Considerando as ideias apresentadas nos textos e outras informações que julgar pertinentes, redija uma dissertação, na qual você exponha seu ponto de vista sobre o tema: As relações sociais por meio da solidariedade.

· A dissertação deve ser redigida de acordo com a norma padrão da língua portuguesa.

· Escreva com letra legível e não ultrapasse a quantidade de linhas disponíveis na folha de redação.

Antes de mais nada, é preciso que os candidatos tenham uma compreensão adequada do tema, estabelecendo a devida relação entre meio e solidariedade; se abordar apenas a sociedade ou o espaço, tangenciará o tema, de dupla dimensão: social e filosófica.

-Texto 2: De perspectiva filosófica, trata a questão da ajuda mútua como um gesto necessário à sobrevivência – é natural que uns precisem dos outros. Dito de outro modo: as redes de cooperação são promotoras do bem-estar não apenas individual, mas coletivo.

-Texto 3: Demonstra que as atitudes solidárias são uma escolha implicada com outros fatores: relações pessoais, sociais, econômicas e culturais. O que fica evidente é que, mesmo pessoas em condições não propriamente confortáveis, podem ter a iniciativa de ajudar os mais necessitados.

-Texto 4: Apresenta uma declaração que, em tom exortativo, convida à mobilização política e coletiva para resolver problemas os quais atingem pessoas no mundo inteiro: a pobreza e a fome. Sabendo-se que o desafio é grande, a necessidade de uma aliança global é urgente e imperativa.

-Texto 5: Aborda a solidariedade por meio da afirmação de que, mesmo sem os atos de caridade, é preciso ser forte e resistir às adversidades. Ou seja, nem sempre se pode esperar um gesto alheio de cuidado, contudo é preciso sobreviver.

-Texto 6: Defende a ideia da ajuda para que as pessoas tenham condições de uma vida digna. Sob esse ponto de vista, as práticas solidárias expressam a porção mais humana que existe em cada um de nós.

Observe-se que a frase-tema não delimita a questão voltando o assunto apenas para o contexto brasileiro, o que confirma a tendência filosófica da proposta ao optar pelo tratamento de caráter mais universal.

Existem algumas possibilidades de abordagem que aqui se expõem, mas não as únicas:

1-as relações sociais são mediadas pela solidariedade;

2-as relações sociais não são mediadas pela solidariedade;

3-as relações sociais são ocasionalmente mediadas pela solidariedade.

-o trabalho pastoral do padre Júlio Lancellotti, reconhecido e premiado: acolhimento e assistência a pessoas pobres, doentes e marginalizadas.

-a importância da mídia na divulgação de situações-problema e promoção de campanhas de conscientização e doação por meio de vaquinhas virtuais ou trabalho solidário + programas que se afirmaram na televisão, como Criança Esperança e Teleton.

-a tendenciosa cordialidade brasileira sempre pronta a se manifestar diante de situações de tragédias, como a ocorrida recentemente no RS.

-a modernidade líquida (Zygmunt Bauman): em tempos de relações passageiras e superficiais, não há espaço para os vínculos autênticos e duradores, verdadeiramente solidários.

-o neoliberalismo, ao estimular as práticas individualistas, acirra a competitividade e impede as ações humanitárias. 

-a “sociedade do cansaço”, de Byung-Chul Han: a “educação” para o desempenho e a competitividade minimiza as atitudes de proteção e amparo.

         Diante das possibilidades, cada redator faz as suas escolhas. Então, que tal um texto a partir da ideia de que as relações sociais nem sempre são caracterizadas pela solidariedade?

ATÉ QUANDO?

“Um a um, todos somos mortais. Juntos somos eternos”. A máxima de Apuleio pode bem ser aplicada às relações sociais que devem ser pautadas na solidariedadeo que nem sempre tem acontecido. Hoje o sistema econômico tem uma implicação direta e perniciosa sobre as atitudes de caridade, embora também seja legítimo reconhecer que, felizmente, há situações em que as pessoas se opõem à inclinação para o egoísmo.

O regime neoliberal tem produzido efeitos não apenas no mundo externo, mas no que cada indivíduo tem se transformado no contexto em que se insere. Expandindo-se juntamente com o processo de globalização, produziu impactos não somente na economia, mas também na cultura e nos valores que permeiam as relações humanas. Assim, o excessivo individualismo, que educa para o sucesso, o êxito econômico e a autoafirmação, e a acirrada concorrência pelas melhores oportunidades têm criado pessoas cada vez menos altruístas. Narcísicas, preocupadas apenas com a própria realização, não praticam gestos de assistência por não serem tocadas pela percepção da necessidade do outro.

Entretanto, há casos em que as práticas solidárias se fazem notórias, e então a esperança de dias melhores se restabelece. Veiculadas pela mídia, campanhas de divulgação e conscientização sobre determinados problemas (guerras, catástrofes, fome) têm mobilizado pessoas a ações que minimizam consideravelmente as demandas de seus semelhantes. Exemplo reconhecido é a atuação resiliente e perseverante do padre Júlio Lancellotti que, para além do acolhimento e da assistência a pessoas pobres, doentes e marginalizadas, inspira tantos outros cidadãos a imitarem seus gestos de bondade visando oferecer algum conforto aos mais desafortunados.

A verdade é que os desafios são grandes, mas nem tudo está perdido. O ser humano, social, e a solidariedade devem restabelecer e fortalecer laços que, nas últimas décadas, tornaram-se um tanto distensos. O sentimento fraterno continua a ser o melhor caminho para o homem estar amparado até os últimos momentos, quando, dos males que o mundo cobrará pelos erros cometidos, só restar mesmo a presença do outro. O que eterniza é apenas o bem que se faz.

O redator optou por uma estrutura acertada para o tempo e o número de linhas disponíveis no vestibular: 4 parágrafos, sendo o primeiro de Introdução, o último de Conclusão e os dois intermediários dedicados ao Desenvolvimento. A decisão é prudente em razão da possibilidade de tratar de dois argumentos de maneira consistente, sem incorrer em três parágrafos potencialmente superficiais (“menos é mais”).

A Introdução cumpre o papel de uma “dissertação escolar”: partindo de uma citação de Apuleio, explicita, na sequência, o tema (relações sociais – solidariedade), apresenta uma tese escolhida entre alternativas praticáveis (“o que nem sempre tem acontecido”) e cita os dois argumentos a serem utilizados na sustentação do ponto de vista (“sistema econômico” + “as pessoas se opõem à inclinação para o egoísmo”). Faz-se necessário aqui ressaltar que o elemento modalizador da tese (“nem sempre”) objetiva para a banca o posicionamento relativo do enunciador: há solidariedade em circunstâncias pontuais.

O parágrafo seguinte (argumento 1) abre-se com um tópico frasal que confirma a escolha indicada na Introdução, colocando em pauta o “sistema econômico” por meio de uma crítica de comportamento dos indivíduos contemporâneos diante daquilo que impõe o “regime neoliberal”. Assim, são coerentes as discussões que seguem sobre como o individualismo e a competitividade comprometem a “percepção da necessidade do outro”.

O próximo argumento também ratifica as intenções enunciadas no primeiro parágrafo. Quando se afirma que “as pessoas se opõem à inclinação para o egoísmo”, demonstra-se que “há casos em que as práticas solidárias se fazem notórias, e então a esperança de dias melhores se restabelece”. Nesse sentido, é pertinente destacar o papel da mídia na disseminação de campanhas em favor de pessoas necessitadas de ajuda, como também é bem-vindo aludir à reconhecida atuação do padre Júlio Lancellotti e o seu exemplar trabalho pastoral.

Finalmente, a Conclusão retoma as palavras-chave do tema (“O ser humano, social, e a solidariedade”), ratifica a tese (“laços que, nas últimas décadas, tornaram-se distensos”), e reconhece que, embora seja difícil contornar o problema, há esperança (“nem tudo está perdido”). Para que o sentimento fraterno volte a ser “o melhor caminho para o homem”, é preciso restabelecer o altruísmo. Numa época em que o ser humano não tem sido caridoso sequer com o planeta, o qual tem cobrado nossa indiferença (“erros cometidos”), o que resta é “a presença do outro”. O redator fecha o texto com uma eficiente manobra linguística de confirmação da coerência e da coesão, retomando a ideia de Apuleio utilizada no primeiro parágrafo: “Juntos somos eternos”“O que eterniza é apenas o bem que se faz”.

O título “Até quando?” é propositalmente provocativo: em que momento teremos a necessária consciência do que precisa ser alterado nas nossas relações com o mundo e as pessoas à nossa volta?

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Escrito por:

Emerson Rossetti

Professor com mais de 30 anos de experiência no ensino médio e superior. Formado em Letras, com Doutorado em Estudos Literários, desenvolve trabalhos voltados também para o estudo da MPB e da História da Arte.

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